A dinâmica de utilização e veiculação do livro didático
[1]Gláucia Silva do Nascimento
[2]Resumo: O artigo em questão visa explanar e problematizar de forma dialética a utilização e a veiculação do livro didático, recurso tão antigo e ao mesmo tempo tão atual na prática educacional. No momento em que a educação entra em crise e não mais os meios tradicionais conseguem dar conta da formação do educando é que esse tema entra em voga e ganha fortes especulações quanto a sua utilização, e quanto a sua eficácia. Logo sua eficiência é colocada em questão.
Palavras chaves:
Livro didático, professor, aluno, ensino - aprendizagem, ideologia, conteúdo.
Introdução
Um dos temas de maior abrangência e alvo de pesquisas na área de educação dos últimos tempos é o conteúdo do livro didático, visto que este recurso adquire, no cenário educacional, um papel de extrema significância, pois se torna o regente das atividades cotidianas, durante as relações de ensino aprendizagem. Fazendo uma análise política e histórica sobre a educação básica no Brasil, notamos uma constante fragilidade e ineficiência, presente na mesma, uma vez que estamos em pleno século XXI e não conseguimos erradicar o fenômeno do analfabetismo. Logo se questiona: como está sendo tratada a educação básica deste país? Onde estão as falhas que persistem na área da educação e que teimam em não serem extirpadas? Assim, é nesse contexto conflituoso que emerge a necessidade de se compreender o conteúdo do livro didático, este que não deveria ser, mas acabou se tornando autoridade máxima e critério absoluto de verdade na relação entre educadores e educandos. Portanto, uma análise crítica se faz necessária para entender a dinâmica da utilização e veiculação desse material, tão presente no processo educativo. Ressalte-se que será enfocado nas linhas que se seguem o livro didático das séries iniciais do ensino fundamental de uma forma generalizada buscando trazer uma visão geral sobre o que esse material procura veicular.
Duas bases de análise e crítica do conteúdo do livro-didático
A análise do livro-didático requer detalhada compreensão de suas bases, ou seja, antes mesmo de sua confecção o livro é pensado minuciosamente e moldado a partir de uma concepção. Para tanto existem duas correntes que se propõem a investigar o conteúdo deste material:
“os preocupados em analisar a fundamentação pedagógica, psicológica, lingüística e semiológica dos textos e os preocupados em revelar os valores, preconceitos e concepções ideológicas contidas no livro didático.” (Freitag, 1997, p.78)
A primeira corrente critica os conteúdos do livro didático sob a ótica científica, diagnosticando esse material como muito ultrapassado, não correspondendo a relação espaço-temporal, a qual estamos inseridos atualmente. Destaque-se que os livros produzidos no Brasil seguem a fundamentação psicológica do behaviorismo, abordagem que se pauta nos estímulos-respostas, durante o processo educativo. Essa abordagem alicerça-se no comportamentalismo, que toma por base o julgamento de que os comportamentos são previsíveis e comuns a todos, situando assim os professores numa tendência a homogeneizar o seu ambiente educativo, característica errônea, pois todo e qualquer público alvo do fenômeno educativo tem por tendência essencial a heterogeneidade. Porém, existem atualmente alguns estudos que procuram fazer o movimento contrário a essa concepção, uma vez que adotam a abordagem cognitivista, que toma por base os estudos piagetianos. Esses estudos procuram relacionar o material didático utilizado na educação ao estágio de desenvolvimento psicogenético, atingindo as diferentes etapas de escolarização. Porém, indaga-se se este modelo não seria um tanto quanto utópico, pois dificilmente um sistema educacional se propõe a criar diversos materiais didáticos, a fim de abarcar as diferentes fases de desenvolvimento do discente, uma vez que esta mudança implicaria em mais gastos e o governo preza por uma política de redução de gastos, mas com eficiência.
A segunda corrente em questão busca identificar, por meio de análises e pesquisas, o teor ideológico contido nos livros-didáticos e certos temas específicos e significantes, como “imagem da mulher”, “concepção de escola”, “os índios”, “os negros”, enfim, temas que são apresentados nos materiais didáticos por meio de uma visão estereotipada e preconceituosa, aquém da realidade do discente. Essas características se mostram presentes principalmente nos textos de leitura.
“O objeto real da ideologia subjacente aos textos é o de criar um mundo relativamente coerente, justo e belo, no nível da imaginação, com a função de mascarar um mundo real, que, contraditório e injusto, é necessário para os interesses da classe hegemônica, características constantes desse mundo imaginário são a estereotipação e a idealização(...)” (Deiró, 2005, p.195).
Assim, ao pesquisar e investigar o conteúdo do material didático utilizado nas escolas, percebemos que o seu caráter ideológico é intrigante, pois nos são incutidos desde cedo valores que nos formarão, principalmente para sermos cidadão passivos, inertes e imparciais quanto a importância do nosso papel, para as futuras transformações sociais.
O livro didático e seus agentes (educador- educando)
Na década de 80, os livros didáticos brasileiros incorporam, a partir das então Políticas Públicas instituídas, uma função interessante, a de
“veicular a política governamental [desse material] com a criança carente (...) de recurso ou oriunda das classes populares e baixa renda.” (Freitag, 1997, p.15- 19)
A partir desta definição, surge uma indagação: será que o principal alvo dessa política, o aluno, está sendo realmente representado na confecção desses materiais? Obviamente sabemos que a resposta é não. O aluno utiliza o livro didático de forma autômata, pois não compreende muitas das coisas que lhes são apresentadas, e lhe é exigido, constantemente, aprender parcialmente todos os conteúdos pré-dispostos nos livros, fazendo da tarefa educativa um exercício doloroso, desmotivante e acrítico. Então, a culpa seria dos professores? Ao tomarem por instrumento essencial no seu trabalho cotidiano o livro didático, o utilizam de forma bitolada, não procurando transcender, em comunhão com seus alunos, os conteúdos neles apresentados, aceitando e repassando o que ali é imposto? São questões que inevitavelmente, arrebatam nossos pensamentos, na tentativa de solucionar os problemas educacionais. Um dos principais agravantes desta problemática é o fato de o nosso currículo educacional ser muito prolixo e, portanto, massante, o que torna a educação desmotivante e insignificante (como exemplo temos as evasões escolares). Como existe uma gama de conhecimentos e conteúdos a serem adquiridos num certo espaço de tempo, o professor se torna um escravo do currículo, quase nunca tendo tempo para realizar as atividades que planeja executar anualmente. É notório ainda destacar que a partir do momento que a confecção dos livros-didáticos se alia à iniciativa econômica, a qualidade do mesmo decai, profundamente, e não mais satisfaz as necessidades dos seus principais usuários (professor- alunos), visto que ele é confeccionado agora, almejando atender as necessidades do mercado, incorporando um maior valor de troca do que de uso, os tornando descartáveis. (ressalte-se que o governo, através do PNLD, no ano de 2007, desembolsou R$ 620 milhões para a compra dos livros didáticos a serem distribuídos por todo território nacional). Logo, uma revisão e uma possível reorientação se fazem necessárias durante a confecção desse material, que se tornou mola-mestra do trabalho realizado pelo educador. Este, por sua vez, tem que ousar e procurar novos meios de construção do conhecimento, tentando se desvincular desta visão unidimensionalista, onde ele (professor) é o agente central do processo educativo, e passar a pensar no processo de ensino- aprendizagem, de forma multifocal, onde cada indivíduo, em sua singularidade, deve produzir e veicular o conhecimento adquirido.
Como é feita a escolha do livro didático?
Nas linhas antecedentes situamos o conteúdo do livro - didático, bem como o teor de sua qualidade. Agora será elucidado outro aspecto, o de como se dá a escolha desse material, visto que o mesmo é uma obra literária bastante difundida e propagada na formação de muitas pessoas.
“Para que um livro seja adotado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC) e distribuído nas escolas públicas, é feita uma avaliação pedagógica pela Secretaria de Educação. Esse processo consiste em uma análise ampla e criteriosa dos aspectos didático-pedagógicos e metodológicos da obra. Um dos programas governamentais de adoção de livros para as escolas públicas é o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático), baseado nos princípios da livre participação das editoras privadas e da livre escolha por parte dos professores.” (site, IBEP)
Ao confrontar a colocação acima com os fatos observáveis, podemos chegar as seguintes conclusões: a teoria não condiz com a prática, pois muitos professores não possuem o hábito da leitura, fator essencial para a escolha criteriosa e aplicada de um livro, o que dificulta e faz com que o mesmo se isente de participar dessas escolhas. Os professores apoiando-se em terceiros ou nos critérios estabelecidos pelas editoras (no caso das instituições privadas), levarão em conta o fator econômico, importante nesta relação de consumo, visto que muitas editoras realizam promoções, visando envolver o educador, que muitas vezes sucumbe a tais apelos.
Um segundo aspecto contraditório, é justamente o fato de que os professores que se reúnem para fazer as escolhas dos materiais que utilizarão, não conseguem ser ouvidos (essencialmente os da rede pública) e são obrigados a acatar o que o governo ou as Secretarias Estaduais decidem em conjunto.
Portanto, a lógica de que os professores podem optar pelo livro que pretendem usar e encaminhar seus pedidos ao MEC, na certeza de que serão agraciados é, no mínimo, ilusória.
O livro didático: de vilão a mocinho
Nos tópicos anteriores foram explanadas algumas nuanças do livro didático e o mesmo foi sendo colocado como principal vilão da educação por diversos motivos. Agora será ressaltada a ótica progressista e dinâmica, deste material.
Existem, em nível regional, projetos que lidam com esse material e fazem “bom uso” do mesmo. A exemplo, existe o projeto “Salas de Leitura”, que a partir de 1.984 tornou-se um programa oficializado pela FAE (Fundo de Assistência Estudantil) . Este Programa permite a dinamização do uso do livro, uma vez que, eles circulam pelas salas, como unidades móveis. Esse material abarca desde a literatura infantil até a mundial. Essa dinâmica de estudos permite uma renovação e diversificação constante dos livros que entram em sala de aula.
Projetos idealizados e oficializados, como este, se fazem necessários, principalmente porque as bibliotecas das instituições de ensino, lócus por excelência de concentração desse material, praticamente não existem, seja pela falta de estrutura seja pela falta de procura.
Então, para que a biblioteca não fique tão isolada, a mercê das mazelas do tempo ou da vontade dos alunos, a mesma se locomove, saindo à procura de seus membros proporcionando assim, por meio dessa circulação, uma renovação dos materiais contidos nela, deixando de ser virtual e passando a ser atual, sendo esse o principal foco dos projetos Sala de Leitura, desenvolvidos atualmente por várias instituições do Brasil.
Considerações finais
Entender a dinâmica que envolve o processo de ensino-aprendizagem, compreende diversas nuanças, dentre elas o conteúdo do livro didático, visto que ao longo do tempo este recurso tornou-se insubstituível e referência das práticas educacionais. Porém, o mesmo precisa de uma renovação, uma reestruturação, pois as mudanças que ocorrem mundialmente, a nível histórico, político, social e cultural não se fazem presente na confecção do livro didático, pois passadas gerações só mudam suas formas de exibição e nunca o seu conteúdo. Para tanto, diversas mudanças se fazem necessárias, desde a formação crítica para o uso desse material, até uma formação continuada do profissional, permeada por uma reflexão que vise incorporar um maior valor de uso do que de troca, do livro didático. Enfim, entender a problemática do livro didático no Brasil transcende a questão educacional, abarcando outras estruturas sociais tais como o Estado, a indústria cultural e o mercado.
Referências BibliográficasFREITAG, Bárbara; MOTTA, Valéria Rodrigues; DA COSTA, Wanderly Ferreira. O livro didático em questão. —3. Ed.—São Paulo: Cortez, 1997.
IBEP (Companhia Editora Nacional). Livro Didático: cuide bem desse amigo! Disponível em <
http://www.eaprender.com.br/1307 >, acessado em 10/11/07.
DEIRÓ, Maria de Lurdes Chagas. As belas mentiras: a ideologia subjacente aos textos didáticos. São Paulo, Cortez/ Moraes, 1979.
[1] Trabalho apresentado como requisito para avaliação da disciplina Tecnologias Contemporâneas do curso de Pedagogia da Universidade Federal da Bahia / Faculdade de Educação, sob orientação da professora Dr. Maria Helena Bonilla
[2] Graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal da Bahia – Faculdade de Educação.